Comércio, Paz e o Papel do Judiciário: uma Revisão Crítica da Teoria da Paz Capitalista de Erik Gartzke
- Dr. Dartagnan L. Costa

- 9 de jul.
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Resumo
Este artigo revisita o pensamento de Erik Gartzke sobre a chamada "paz capitalista" (capitalist peace), com ênfase na relação entre comércio internacional, liberdades econômicas e estabilidade internacional. Argumenta-se que a redução de conflitos armados está intrinsecamente ligada à interdependência comercial, ao desenvolvimento econômico e à garantia de direitos por instituições jurídicas estáveis. Demonstra-se que um Judiciário independente e comprometido com liberdades fundamentais – especialmente a proteção à propriedade e aos contratos – não é apenas um pilar interno do desenvolvimento econômico, mas também um fator de pacificação internacional. A análise contrasta esta visão com perspectivas intervencionistas ou protecionistas, que ignoram o papel civilizatório do comércio. Conclui-se que a consolidação de Estados Democráticos de Direito, com Judiciários livres e leis justas é condição sine qua non para que o comércio exerça plenamente sua função pacificadora.
Palavras-chave: paz capitalista; comércio internacional; Judiciário; liberdades econômicas; Erik Gartzke.
Abstract
This paper revisits Erik Gartzke’s theory of “capitalist peace,” emphasizing the relationship between international trade, economic freedoms, and global stability. It argues that the reduction of armed conflicts is intrinsically linked to commercial interdependence, economic development, and the guarantee of rights by stable legal institutions. The study underscores that an independent judiciary committed to fundamental liberties—especially property and contract enforcement—is not merely a pillar of domestic economic development but also a factor of international pacification. The analysis critically contrasts this view with interventionist or protectionist perspectives that disregard the civilizing role of trade. It concludes that consolidating the rule of law through free judiciaries and just laws is essential for trade to fulfill its peace-promoting potential.
Keywords: capitalist peace; international trade; judiciary; economic freedoms; Erik Gartzke.
Introdução
A hipótese de que o comércio internacional atua como força promotora da paz entre as nações tem raízes antigas, remontando a pensadores como Montesquieu, Adam Smith e Kant. No entanto, no século XXI, poucos estudos empíricos foram tão influentes na revitalização desta ideia quanto os de Erik Gartzke. Em sua formulação da chamada “paz capitalista” (capitalist peace), Gartzke (2007) desloca o foco da tradicional “paz democrática” para o papel central do desenvolvimento econômico e da integração de mercados como fatores determinantes da redução de conflitos interestatais.
O presente artigo busca analisar criticamente essa tese, vinculando-a a uma dimensão institucional muitas vezes negligenciada: a necessidade de um Judiciário livre, independente e apto a garantir as liberdades fundamentais. Argumenta-se que a interdependência comercial e os ganhos de troca não se sustentam sem um arcabouço jurídico estável que assegure contratos, propriedade e limites ao arbítrio estatal. Em contraposição a visões estatizantes ou protecionistas, defender-se-á a relevância de um Judiciário efetivo na promoção da paz – tanto interna quanto internacional – como corolário da própria tese de Gartzke.
Desenvolvimento
1 A Teoria da Paz Capitalista
Erik Gartzke formulou a teoria da capitalist peace como crítica à “paz democrática”, demonstrando empiricamente que democracias não são mais pacíficas entre si por suas instituições representativas em si mesmas, mas por fatores correlacionados: desenvolvimento econômico, abertura de mercado e liberdade financeira (Gartzke, 2007).
Em suas palavras:“Capitalism leads to peace because states engaged in open markets have less incentive to fight one another.” (Gartzke, 2007, p. 166)
A hipótese central sustenta que as nações mais integradas economicamente passam a enxergar a guerra como irracional: o custo de interromper fluxos comerciais supera largamente o benefício potencial de conquistas territoriais ou coerção política (McDonald e Sweeney, 2007). Antigamente, quando a guerra se justificava pela aquisição de terra para produção agrícola, poderia se ver alguma lógica econômica, mas em tempos atuais, isso não se demonstra mais como relevante.
Essa lógica é reforçada por estudos quantitativos que apontam forte correlação negativa entre níveis de abertura comercial e incidência de conflitos armados (Oneal e Russett, 1999).
Gartzke (2017) amplia essa visão ao afirmar que não apenas o comércio em si, mas a liberdade econômica – entendida como respeito a contratos, direitos de propriedade e reduzida intervenção estatal – cria as condições para um “dividendo da paz”. Nessa perspectiva, o comércio é inseparável de instituições que garantam previsibilidade e segurança jurídica.
2 Comércio, Instituições e o Papel do Judiciário
Ao analisar o papel do comércio como vetor de paz, torna-se evidente que a interdependência econômica só floresce em ambientes institucionais estáveis. Douglass North (1990) enfatiza que mercados eficientes exigem direitos de propriedade bem definidos e mecanismos confiáveis de resolução de disputas. Sem um Judiciário independente, capaz de aplicar a lei de forma imparcial, os contratos comerciais perdem valor, e o investimento internacional torna-se arriscado.
Em âmbito internacional, a previsibilidade oferecida por sistemas jurídicos confiáveis reduz o risco de expropriação, violações arbitrárias de contratos ou imposição de barreiras protecionistas. Como destaca Rodrik (2011), o Estado de Direito é condição necessária para que economias participem de cadeias globais de valor e se beneficiem de fluxos de investimento direto estrangeiro, mesmo, estranhamente não ser o modelo chinês de atuação.
O Judiciário é pilar fundamental da credibilidade internacional de um país. A proteção eficaz dos direitos individuais, especialmente propriedade e contratos, sustenta a confiança que viabiliza o comércio – e, por conseguinte, a paz que Gartzke descreve como “capitalista”.
Quando as relações econômicas não encontram proteção nas regras estabelecidas, não existe como promover o comércio de forma adequada. Não há como quantificar um custo jurídico sem previsibilidade, o que encarece os produtos e serviços, além de ser um dos elementos de precificação que afeta a competitividade no mercado.
3 Crítica ao Protecionismo e ao Estatismo
A hipótese da paz capitalista converge com uma tradição intelectual mais ampla que associa comércio à civilização. Montesquieu (1748) cunhou a expressão doux commerce para descrever como as trocas comerciais suavizam os costumes e promovem a tolerância. Deirdre McCloskey (2010) reforça essa visão ao demonstrar que o “grande enriquecimento” moderno foi possibilitado pela valorização moral do comércio e pela dignificação do empreendedorismo.
As teses protecionistas ou estatizantes, ao proporem barreiras ao comércio e extensiva intervenção estatal, desconsideram os mecanismos de pacificação oriundos da interdependência econômica.
Ao restringir a liberdade econômica, tais modelos enfraquecem a economia, a Democracia e o próprio Judiciário, transformando-o em instrumento de políticas de favorecimento ou repressão.
Em regimes fortemente intervencionistas, observa-se com frequência o colapso das garantias jurídicas, seja por insegurança regulatória, seja por captura política das cortes. Isso mina a confiança dos agentes econômicos, desincentiva o investimento e reduz a integração comercial. O resultado não é apenas empobrecimento econômico, mas aumento do risco de conflitos internos e externos.
Como salienta Hayek (1960), “um governo limitado pela lei é o único ambiente em que a liberdade econômica – e, portanto, a prosperidade e a paz – podem florescer”. Em consonância com Gartzke, a paz duradoura não pode ser alcançada por decretos autoritários ou intervenções nacionalistas, mas sim pela construção paciente de instituições que protejam liberdades fundamentais e facilitem o comércio.
Conclusão
A teoria da paz capitalista de Erik Gartzke oferece uma interpretação robusta, fundamentada empiricamente, de como o comércio e as liberdades econômicas reduzem a incidência de conflitos armados. Em contraste com abordagens intervencionistas ou protecionistas, que subestimam o papel civilizatório do comércio, Gartzke demonstra que a interdependência econômica transforma a guerra em uma escolha irracional. Claro, que no fim, a política supera o racionalismo comercial, mas a ideia das relações de comércio permitem construir pontes e caminhos, melhores que um banho de sangue.
Contudo, para que o comércio exerça essa função pacificadora, é indispensável a existência de um Judiciário independente, comprometido com a aplicação imparcial da lei e com a proteção dos direitos fundamentais. Leis justas e um Judiciário livre não apenas asseguram a liberdade econômica, mas criam a base de confiança necessária para a cooperação internacional. O problema maior é definir o que seriam leis justas e um Judiciário realmente livre, haja vista que a intervenção do Executivo e políticas ideológicas no Legislativo guinam e minam o livre comércio e a evolução comercial.
Em última análise, a consolidação de Estados Democrático de Direito – com poderes judiciais autônomos e limitados pelo respeito às liberdades individuais – é condição essencial para a construção de uma paz duradoura entre as nações. O comércio não é apenas troca de bens, mas intercâmbio civilizatório que requer, como fundamento, a justiça. Ignorar essa dimensão institucional equivale a abandonar as verdadeiras condições da paz.
Referências
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NORTH, Douglass C. Institutions, Institutional Change and Economic Performance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
ONEAL, John R.; RUSSETT, Bruce. The Kantian Peace: The Pacific Benefits of Democracy, Interdependence, and International Organizations, 1885–1992. World Politics, v. 52, n. 1, p. 1–37, 1999. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/journals/world-politics/article/abs/kantian-peace/905A08E8E9B1587F34618AAAB52007A4. Acesso em: 06 jul. 2025.
RODRIK, Dani. The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the World Economy. New York: W. W. Norton & Company, 2011.
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